ANA FLOR
FERNANDES RODRIGUES


O míssil travesti na goela do bolsonarismo:
outros caminhos possíveis numa escrita bélica








Talvez eu tenha escolhido a fotografia da série fotográfica “Virgenes de La Puerta” para fazer parte desse texto por compreender a importância da profanação do sagrado. As interpretações podem ser múltiplas frente nossa atual conjuntura e conexão com os discursos religiosos, esse movimento de interpretação me excita na escrita. Gostaria de iniciar esse escrito questionando: quem melhor para atirar um míssil na goela do bolsonarismo do que uma travesti? Mas não apenas disparar: segurar, mirar, encher-se de força e disparar com precisão.

Uma explosão. Tecnologias bélicas de enfrentamento ao neoliberalismo - e seus tentáculos - que podem surgir de diversas e diferentes formas, gosto de pensar como a escrita travesti pode ser uma delas. Escrita de guerra, de fissura. Uma escrita que pensa as polícias das normas e códigos de condutas e quebra-os ao meio, no sentido de disputa. Disputas biopolíticas, que colocam em evidência uma biopolítica da transfobia.

Historicamente, travestis foram submetidas ao lugar de vidas precárias, pensando com Judith Butler. É compreendendo essa precariedade na qual fomos e somos submetidas que acredito na importância e potência da escrita e produção de saberes travestis. Saberes que não só passam pela goela como um míssil, mas que destrincham cada pedaço do corpo.

O Brasil é um país que projetou uma rede discursiva sobre travestis. Redes essas que regulam certos discursos e formas de visualizar as travestis, modos visuais na sociedade. Butler chamaria de “enquadramento visual”, fazendo uma relação da invasão dos Estados Unidos com a guerra no Iraque. Tentarei aqui explicar rapidamente o que quero dizer com isso. No livro “Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?” a autora diz que os Estados Unidos passou a publicar sobre as guerras através de ângulos específicos. Os jornalistas enviados as guerras precisavam assinar certos termos, as câmeras e fotografias eram todas planejadas, assim como os vídeos que eram disponibilizados. Ou seja: a população estadunidense passou a ver a guerra a partir do que os Estados Unidos permitiam e gostariam que vissem, uma orquestração do que deveria ser tido enquanto realidade. 

Assim como os Estados Unidos, o Brasil produziu modos visuais quando o que está em pauta são as travestis. Ou se preferirem: uma polícia cisgênero. Meios de regulação que visam reiterar um lugar de margem. Neste sentido, a escrita travesti é uma escrita de fricção. Uma escrita que tem como objetivo desnaturalizar um olhar de precariedade, mas não apenas. É um processo de produção de saberes, que tem como objetivo apontar novas possibilidades de mundo e de vida. Desta forma, venho pensando como uma escrita travesti rompe com o enquadramento visual proposto pelas instituições de poder brasileiras sobre corpos e identidades travestis. Justamente por esse motivo, ela é bélica.

Belicosa no sentido de confronto, de disputas de narrativas que foram injetadas social, política e culturalmente nas veias de um país como o Brasil. Belicosa por pensarmos que, desde sempre, ela se constrói no lugar de enfrentamento. Bélica no sentido de estar munida de aparatos tecnológicos que, numa relação de poder, também disparam.

Neste momento de crise, o Brasil enfrenta o agravamento das misérias. Uma afetação pandêmica que surge com o apoio bolsonarista. Por parte do governo, um conjunto de medidas que visam, pensando com Foucault, não só um “fazer morrer”, mas também um “deixar morrer”. Grupos que foram colocados em lugares de vulnerabilidades estão, como sempre, em risco. Ou melhor: na linha do tiro. Um risco da banalidade do mal, onde os meios de regulação do governo e parte da sociedade, corroboram com uma tragédia anunciada.

Assim sendo, tenho utilizado a escrita como uma possibilidade de produzir inquietações frente ao caos. De uma certa anunciação de “outro fim que não a morte”, como se propõe essa revista. Na mesma perspectiva de uma ótica travesti, como um convite para que mais travestis se inquietem e compreendam a importância de uma assembleia travesti em um Brasil de canalhas. Afinal, é um erro acreditar que travestis são perigosas e esquecer que nossas escritas podem ser muito mais perigosas do que nossa identidade.

Por fim, reitero que esse é um momento de pensarmos com as travestis, aprendermos com as travestis, autogestionarmos como as travestis. Porque se as travestis sobreviveram às labutas e poços da ditadura militar, também sobreviverão ao mundo pandêmico e as milícias bolsonaristas. Nem que para isso seja necessário um míssil de precisão na goela do bolsonarismo.





Ana Flor Fernandes é graduanda em pedagogia pela Universidade Federal de Pernambuco; pesquisadora no Grupo de Estudos e Pesquisa Foucault e Educação; Coordenadora regional Nordeste do Instituto Brasileiro Trans de Educação, membro do Núcleo de Direitos Humanos e Contemporaneidades LGBT – NUCH/UFPE


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