ARIANA NUALA


Cartas para Marla





Esta sou eu, Marla, em 1968 um pouco depois de termos nos falado pela última vez.

Recife, 30 de maio de 2016

Para minha amiga,

        Além do bebê e eu, enquanto nossos corpos cruzam a paisagem que posteriormente foi impressa nesta fotografia, existe uma recordação que passa sempre pelo meu coração. Se for ele que nos traz à tona a memória.

        A lembrança é de uma praia, um mar que não é calmo, e talvez por isso vazio. Areia quente, som de ventania. Aqui no Brasil isso poderia ser uma descrição qualquer sobre um período doce em um ambiente litorâneo, é uma imagem que preenche aqueles que já sentiram o cheiro do mar.

        A fotografia estava no meu quarto, eu agora já com quase 80 anos escolhi logo esta para fazer parte das imagens que me rodeiam. Não havia motivo quando fiz esta escolha, pensei ser a cor, pensei ser o meu sorriso, mas era de uma ordem a qual eu não poderia compreender e assim apenas a fixei na parede.

        Quando terminei de ver o seu filme com a pouca visão que me resta e com Lia ao meu lado que não parava de contar sobre como para você recordar era algo sem peso. Eu pensei sobre nosso íntimo que é visceralmente criação. Revisitar é estar presente mais uma vez e como não estar presente sem ser criando? Você retrata e vive ainda com a cabeça e os pés no mar.

        E eu? Me pergunto qual foi a última vez que o vi, talvez tenha me afastado com medo de me afogar e de aprofundar-me dentro de algo tão gigantesco. Você foi engolida pela baleia e estava confortável naquele canto. Eu por medo, permaneci segurando um bebê que não era meu e mesmo em uma ilha, não procurei o mar.

        Sentia nessa época como se fosse deixar de ter sonhos. Muitas vezes hoje coloco músicas que me lembram o agito ou a calmaria das águas e deitada em minha cama fecho os olhos imaginando tudo ao meu redor cercado de maresia. Pequenas gotas batem em mim e enquanto respiro tomo consciência de minha pouca coragem.

        Hoje, já não vejo assim, escrever para ti é uma invenção minha que me põe em um lugar bobo, como uma criança. Te revelo que minha vida foi longe das marés, mas me desloco para aprender, mesmo depois de velha com alguém que viveu perto das águas ou não deixou de sentir sua presença mesmo quando estava longe.

        Não sei onde tudo isso vai levar, toda essa conversa. Acredito que existe alguma brecha que possa de repente te lembrar o próprio mar dentro de algumas palavras. Sinto-me dançando ao escrever, algo que também não faço faz já há algum tempo.

        Seu filme termina com lembranças de amigos falecidos, até pouco me sentia assim também, parecia não conseguir mais me articular. Porém todas aquelas imagens, me fizeram recordar. Assim, voltei a criar. Saí de minha cama, pedi para Lia me levar para praia mais próxima, caminhei um pouco pela rua antes de chegar ao mar. Aceitei que ao caminhar tinha vivido muito também, estava cansada, mas me vieram imagens das estradas que percorri. Vivi neste momento o real significado da palavra atravessar. Passei para outro lado. Assim, morri, bem em frente ao mar e nasci novamente em minha consciência.

Com carinho, Marla.


P.S.: Destino também esta carta para Lia, pois se não fosse por ela nunca teria feito esta viagem e em meu percurso sua presença estava sempre comigo.





Achei a foto nas coisas da minha mãe. É uma fotografia antiga da minha avó que morreu em 2008 segurando um bebê, não sabemos quem é a criança e nem o lugar em que a foto foi tirada. Há uma recorrência em não saber, mas também existe uma curiosidade que permite o desejo de falar. A carta acima é um pequeno exercício para contar o que não é dito, sobre uma história escondida, onde o silêncio e as dúvidas são mais comuns do que as palavras. Então, ao buscar pistas, como fotos para quem tem o privilégio de tê-las e arquivos que também podem ser gestos e musicalidades sutis, podemos encontrar tesouros para acessar narrativas sobre o que aparentemente não deveria estar vivo.

O exercício da escrita vem como imaginação, uma proposta telepática na descrição em cada detalhe. Há pouco tempo, li o livro da Maryse Condé chamado Eu, Tituba: a Bruxa Negra de Salém. E incorporando alguém através de arquivos, Condé, parece dialogar com Tituba, uma mulher negra antilhana acusada de bruxaria na cidade de Salém. A tecnologia de ativação pode ser recorrente enquanto contrafeitiço diante do esquecimento e da necropolítica. Parte da decisão de manter vivos aqueles que "morrem".

Acredito nas fendas que são possíveis e que ocorrem dentro de cada exercício, não existe um método, pode ser na escrita, pode ser na dança ou qualquer outro fazer que tenha intenção em uma conversa incorporada. Vivemos no mundo onde a comunicação está grampeada, vigiada e controlada, então me pergunto sobre as telepatias entre "vivos" e sobre os escapes que fazemos para irmos além das relações constitutivas de um mundo em colapso.

Esta carta foi feita em 2016, mas foi revisitada para esta publicação, para falar de morte e me manter viva preciso falar com os mortos. A viagem, por mais evidente que pareça, às vezes nos mostra que os peixes são tão grandes quanto o mar.








Ariana Nuala (Recife | PE - 1993) é educadora, pesquisadora e curadora independente. Combina estratégias que começam no corpo e se condensam em escrita e imagem. O exercício na curadoria é também proposta artística e educativa, uma necessidade em acompanhar e articular que tange seus próprios processos. Formada em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco (2017), atua desde então como coordenadora de conteúdo e também do educativo no Museu Murillo La Greca e integra o CARNE Coletivo (@carnecoletivo) responsável pela Mostra Palco Preto realizando ações formativas e de curadoria nas artes visuais entre artistas afrodiaspóricos de todo o país. Seu exercício constante é incorporar práticas no seu caminhar, investigando os gestos entre o cuidar e o tensionar. Assim, busca abrir espaços de ativação em múltiplas paisagens.


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