CÍNTIA GUEDES


A coragem que não temos1





O que mais poderia estar apostando em um futuro na sombra de um forte escravista? Era evidente que a prosperidade era um rosto da desapropriação.


Saidiya Hartman em Lose Your Mother


Olho pro tempo armada. O cabelo, o peito… quente, pesado. Encontro imagens de um vulcão desperto. A lava, como água, arrasta um porvir ladeira abaixo. Corro, não escapo, e desisto, porque aprendi com a poesia alguma coisa sobre coragem.


Desisto dos séculos que passamos erguendo estranhas figuras de "segurança" e segregação, de "prosperidade" e propriedade. Desisto do horizonte utópico de uma legião de terráqueos, capazes de cercar tudo aquilo que tocavam.  


Desisto de tentar percorrer o caminho inequívoco da história, e da travessia imposta desde cruzamos uma porta sem retorno em direção a um futuro de violência e desapropriação. Desço da barca que promete assentar-nos nas terras de um mundo que funcionaria, enfim, como um sistema ordenado.2


Viajantes do tempo, há quem ainda aposte na promessa de um renascimento?


As que nunca obtiveram o passaporte de acesso ao edifício da humanidade, as que tiveram rompidas suas relações de parentesco… que novas alianças faremos?


Aquelas que experimentam o presente presas num entre-tempo, tropeçando em imagens de um passado com o qual não queremos mais ser identificadas, e assistindo imagens de um presente no qual é impossível grudar.


A imaginação foi posta em cativeiro. Quem sobreviverá às imagens deste tempo?


(Sonho. Velhas escravocratas morrem apavoradas pelo seu próprio Deus).


O 'tempo' que tomamos como progressão, por tanto tempo percebido como uma linha contínua supostamente capaz de deixar para trás eventos intransponíveis: o apartheid, o tráfico transatlântico, a diáspora, a escravidão, esse tempo rachou muito antes da chegada do vírus, e agora,vemos todes a sua cara: desapropriação, uma pilha de corpos, matéria para qual insistimos reclamar humanidade, como se a humanidade fosse capaz de conferir-lhes dignidade.


Nem aos mortos, nem aos que restarão vivos.


E se não for com a finalidade de restaurar o mundo como o conhecemos, o que pretendemos ativar? Os restos de nossa humanidade? Ou que outro compromisso faremos?


Não é a estrutura e o conteúdo de mundo como o conhecemos que precisam ser restabelecidos, e sim o próprio espaço-tempo que habitamos que precisa ser reelaborado.


O mundo como o conhecemos arruína em uma velocidade nunca antes experimentada de modo tão abrangente. Mas a algunas de nós sempre foram entregues os restos desse mundo, e muitas estivemos dedicadas a investigá-los rigorosa e visceralmente.


O vírus que nos acomete em 2020 é sistêmico. Seu efeito sócio-político é aprofundar e expor a rachadura do sistema-mundo. Sobra um contra-trabalho a ser feito. No caldeirão de restos, abrir possibilidades de especular um futuro no qual vidas pretas, trans, precarizadas, e tantas outras desassistidas pelo sistema mundo, possam recusar a posição de valor a ser expropriado, posição que parecia ser a única possível na equação indefinidamente repetida ao longo da história colonial.


Não é um projeto universal, e depende de nossa capacidade de se desfazer de certezas e realizar novas alianças. Também não se trata de um projeto de aderência total, ou de coerência inequívoca.


Riscar um mapa de restos de tempo para abrir, madrugar a história, e abraçar a capacidade de seguir um caminho de errância e destino indeterminado. Afinal, é a possibilidade de retorno ao mundo conhecido, onde nossas posições estavam pré-determinadas, que se esvai.


Retornar é o gesto que se apresenta como caminho impossível.


As que neste momento morrem em corredores infectadas por um vírus, foram antes disso empilhadas em porões. As que rapidamente podem ser convertidas em restos, cujo o valor da vida sempre excede aquilo que as lógicas do capital chama de valor, para essas, desistir desse mundo é uma coragem.


A coragem do mergulho numa temporalidade escura, indefinida, no qual a terra não seja convertida pelo sistema-mundo em dote e privilégio, mas seja tomada como nos ensina Beatriz Nascimento, como  “um elemento indispensável ao conjunto da vida humana, em seu significado espiritual”.


E se como me contou a cineasta Ethel Oliveira, "a criatividade é a nossa espiritualidade em movimento", tenhamos coragem para transformar nossa língua cortada e navalha do tempo: Fazer novos compromissos, assentar o destino na esquina, sabendo que não há, aliás nunca houve, nesse mundo que se acaba, coisa nenhuma a perder.


Título inspirado no poema Fábula de Jarid Arraes, cito aqui os versos:

desistir é coragem difícil
somos programados
para tentar

deslizando aos barrancos
a pele das pernas
esfolada
os pulsos marcados
pelos rosários

é preferível morrer
sorrateiramente
em gorduras
açúcares
refluxos
pedras nos órgãos
no peito

mas desistir
essa é uma coragem
que todos
não temos


As idéias sobre o Mundo Ordenado, bem como sobre o fim do mundo como o conhecemos que aparecem nesse texto, visitam o pensamento da filósofa Denise Ferreira da Silva, A Dívida Impagável (2019), na entrevista The end to "this" world (2019), dentre outras publicações.







– Cíntia Guedes nasceu mulher-macho em Campina Grande – Paraíba, em junho de 84. Em quase sete anos de morada, a Bahia lhe rendeu régua e compasso. Hoje vive entre Campina Grande e Rio de Janeiro, é doutora em Comunicação pela UFRJ e realiza ações diversas em diálogo com o campo das artes. Suas pesquisas giram sobre os temas do corpo, da memória e da produção de subjetividade, desde perspectivas anti-coloniais e anti-racistas.



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