LINN DA QUEBRADA


antes que o mundo acabe comigo
eu levo a cabo o mundo





vocês tentam se esconder mas não conseguem. eu finjo que não os vejo, sodomitas endividados afrouxando a corda em volta de seus pescoços murchos enquanto aplicam adornos disfarçados de fuxico e se masturbam pelos cantos da casa, alienados em si mesmos, completamente solitários e fujões. trocando entre si impressões sobre o sabor levemente adocicado de seu sêmen. e eu nem sequer me movo, já cansada de tanto me debater acorrentada aos pés da cama. onde você estava quando eu gritei silenciosa seu nome em vão? por que não se levantou?


estou sozinha com as palavras. as palavras e eu. é bom fingir estar sozinha principalmente quando se está. só.

como organizar o meu dia. meu tempo. minha casa. minha cachorra. se tudo é meu e desorganizado. tudo ocupa seu devido lugar na minha desorganização. eu cozinho. eu lavo roupa. eu as sujo. eu estendo e ainda assim não faço nada. eu mal faço. mas faço tudo de um modo que se possa dizer que é tudo muito bem feito.

o mais difícil é não saber onde se quer chegar quando não se tem lugar algum pra ir. não se pode sair. mas também não se pode entrar. nunca se pôde. a não ser que se tenha convite. eu mesma já fui convidada muitas vezes. muitas vezes não ia. mas gostava sempre de ser convidada mesmo que não fosse. eu gostava de ter para onde não ir. agora não posso mais. tenho que ficar onde estou. e daqui não saio, daqui ninguém me tira.  

viver é um ato irremediável. e sim, concordo que seja assustador. eu mesma me sinto perplexa diante da vida. estou perdida e sem esperanças. não espero nada de ninguém. de mim que espero demais.

estou paralisada diante de minha própria presença. antes sofria por não ter tempo pra dedicar a mim mesma, agora sofro porque tenho tempo de sobra e suficiente para não saber o que fazer com ele. nada parece que faz muito sentido e ainda assim tudo me faz sentir muito. não sou pessimista. muito menos realista. sou ficcionista: invento verdades. esfrego maliciosamente meu corpo contra o mundo. real? eu não acredito no amor e suas promessas mas estou apaixonada e desiludida. desejo copiosamente o fim do amor e seu sistema de coisas. d'eus é amor?

por medo parei antes mesmo de começar. principício. me deparar com a folha em branco é um pouco intimidador. me deixa tímida, acanhada, até um pouco constrangida. como se diante de todas as palavras existentes no mundo ou pelo menos na minha língua, das que eu conheço, eu tivesse que organizá-las, orientá-las para um pensamento. me traduzir. me transcrever de forma extraordinária, por mais ordinária que eu seja. é um ato muito íntimo: ser ordinária. a cada pensamento novo que descubro ou encontro é como se tirasse uma peça de roupa. meus pensamentos me deixam desnuda. apesar de todo meu pudor não tenho vergonha de tirar a roupa na frente dos outros. tenho sim. mas tenho mais vergonha de ficar pelada na minha própria frente. não sei por onde começar. o começo me assusta. me apavora. tenho real empatia pelo fim. eu gosto do fim das coisas. final de filme, série, livro, temporada. mas não é todo final que me agrada. fim de sabonete? não suporto. fim de pasta de dente, nem me comovo. fim do mundo? gostaria mas prevejo que na hora exata poderia relutar. como reluto nesse mesmo instante. porque meu medo é do que vem depois do fim. tipo quando o papel higiênico está acabando. o que me apavora é a possibilidade de não ter outro ali. o que vem depois que tudo termina? tem final que continua. tem fim que não acaba. quando a rua termina você atravessa. beco sem saída sem saída de emergência. súbito fim de espetáculo teatral. dissipação do: já terminou? aplausos. será então que tava acabando e eu nem percebi?  é preciso ser muito corajosa para assumir o fim sem ressurreição. sem reencarnação. sem segunda chance. é cruel encarar o fim. finalizar é uma arte. e como arte não tem finalidade. apenas é. sente-se. acomode-se e desfrute a viagem.

quero fazer de minha morte um segredo e quero compartilhá-la só comigo. eu vou morrer. eu preciso morrer. mas antes disso preciso ter a coragem de matar. matar e morrer. então seria isto um diário ou um testamento?





– Linn da Quebrada é uma multi-artista brasileira. Além do elogiado disco Pajubá (2017), Linn é apresentadora de um talk-show e também atua no cinema e na TV. Travesti e "artivista", Linn  tem alcançado e conquistado territórios em outros países e continentes, para além do Brasil, com uma arte combativa, que disputa espaços, narrativas e imaginários. 


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