MADAMA BRONA


Feitiço para desatar nós
em 8 parágrafos





Esse não é o fim do mundo. O mundo já acabou. O mundo mal começou. Não é a primeira vez que o mundo acaba. E esse não é o único mundo que existe. Muitos outros mundos já acabaram e outros tantos estão em formação. Alguns são fantasmas, e outros tem o poder de ressuscitar [tornar a viver, ressurgir]. O futuro simplesmente não tem fim. O futuro é assombroso e assombrado. O futuro é a ilusão e o sonho do passado [utópico, irônico]. O tempo não é linear, o tempo simplesmente não faz sentido. Respira. É a respiração que abre e fecha os portais [desata os nós]. Respira mais fundo. Tudo respira. Esse não é o fim do mundo, estamos acertadas?


Esse não é O fim do mundo, mas a decadência e a mutação de um dos mundos. Todo dia rezo pela sua morte. O vírus apenas replica a toxicidade do que chamamos de sociedade civilizada [veneno]. A imaginação colonial-capitalista-moderna-branca-hétero-cisgênera-binária-normativa já está bem desgastada, humilhada e ressentida. E ao se confrontar com as suas próprias limitações, faz birra e quer o que mundo inteiro acabe junto com ela. É a necropolítica, nas palavras de Achille Mbembe. Palavras que têm poder, palavras que conjuram feitiços. Liberdade. Criação. Desejo. Transformação. Movimento. Ainda que seja interno. Ainda que seja lento. Ainda que seja assustador.


A civilização que se julga tão superior e evoluída cagadora de regra geral e exclusiva quer ser a eterna protagonista. Antropocena, falsa, dissimulada. Grande ode ao umbigo. Primeiro o homem, depois a mulher. Quem bate e quem apanha. O homem bom e a bruxa má. A coitadinha, a santa e a puta. O herói. Os demônios. E nada além disso. O totalitarismo de um único deus-cristo-imperialista. Vênus e lua na cosmovisão dominada pela autoridade de júpiter e saturno. Eu quero que o olimpo se exploda. Urano, netuno e plutão são a alienígena, o invisível e o monstruoso. Há boatos, já bem antigos, que o saturno é na verdade feminina e afeminada. Agora é tempo de saturnalizar a percepção. Lembrar de todos os nomes. A fronteira é a pele, a máscara, e o corpo como território de disputa. A civilização ocidental acha que entende tudo mas na verdade ela não entende nada. O que é obra do acaso, golpe do destino, sorte, fortuna? E o que é construção, encanto, feitiço, artificialidade, sortilégio?


A tentativa [falha] de domesticar o que é selvagem. Tentam controlar a vida que escapa pelos dedos e os engole. A vida é úmida. Rios e cachoeiras, fontes renováveis, espíritos da água. O corpo é transitório, passagem, efêmero. O joelho pensa, as coxas sentem, os pés são inteligentes, todo o corpo comunica. Somente as monstras sabem ler os sussurros para convertê-los em palavras corporificadas [feitiço]. São as mãos das Moiras que costuram os fios do destino. O inconsciente, o destino, o instinto, o mistério. Naturalmente, a palavra constrói. Tudo entre nós é um grande nó. Muito embora o vírus tenha nascido de forma acidental e orgânica, ele não é simplesmente natural. A maneira como o evento COVID-19 foi ~viralizado~ é abusadamente humana.


No branding do neoliberalismo, corona é inovação mercadológica, quer se vender como revolucionário, inovador, gratiluz. Paul Preciado é quem pergunta: que tipo de revolução pode fazer um vírus que só faz isolar e individualizar? Talvez o ato de parar e de desacelerar seja potencialmente muito transformador. Mas quem é que pode parar? Existe uma sabedoria especial no silêncio, no que é lento e alarga o tempo. Mas como passar por esse momento se nós já internalizamos a velocidade? Transtornadíssimas estamos. Em espera, nos fingimos de morta esperando a morte dos nossos inimigos. Isso também é uma estratégia. Aderir acriticamente a todas as medidas de exceção é uma cilada. Quem são os nossos inimigos [eles se fingem de amigos]? Existe oposição ou já estamos todas sugadas pela lógica do trabalhar e punir?


Com as técnicas algorítmicas, tudo acaba se tornando um simulacro feito para capturar e amansar a ~audiência~. A colonização, instrumentalizada pelo capital, objetiva ocupar todos os espaços. Quer consumir tudo [esvaziar no branco do excesso de nada]. É por isso que o movimento precisa ser nômade, sigiloso, altamente mutável, malandro, repleto de sentidos e segredos, perspicaz, sempre confundindo e debochando, se reapropriando e depois abandonando, jogando com o poder, sabotando as estruturas. Inevitavelmente, tudo é absorvido. A gambiarra é disfarçar o veneno para que ele possa ser engolido junto com uma parte da nossa vida. O processo de fuga [suporte da cura] é mercurial, flui pela estratégia, trapaça, truque, conhece muito bem todas as frestas e sabe criar rachaduras. Não se conforma, brinca com a contradição e sabe se camuflar. É perigoso e tem boa memória.


Existe inspiração onde há sabedoria: na trajetória dos povos tradicionais, na história do aquilombamento, na ancestralidade das bruxas, nas periferias, nos sonhos, na dança, no corpo, no cu, na buceta, no exercício de comunidade, no ritmo, nos cruzamentos, nas dúvidas, nas desconfianças, na alquimia de exu, na ousadia de maria bonita, nas ervas, nas florestas, na imaginação, , na memória do dna, no ato falho, nos afetos, na escuta e na observação silenciosa que não julga, na perspicácia do medo, na madrugada, na noite do fim dos tempos, no apocalipse do corpo, na tempestade, nas ondas... e que assim seja, para que possamos expandir as possibilidades e exigir o impossível.


Limites existem para serem exercitados, são plásticos, reprogramáveis. É preciso continuar desejando, renovando as fontes, repletas de impulso-vida, fogo, vulcão. Há certos mundos que estão em germinação. Água, úmida, fértil. Nada disso pertence a mim ou a qualquer outra unidade relativamente autônoma. Parece que sou cheia de certezas, mas isso é apenas consequência do meu gosto pela costura. É que eu fico animada com o desenrolar da trama. Mas a verdade é que eu transbordo de dúvida. Se você não está confusa você não está entendendo nada. Eu desejo criar um feitiço que se volte para a vida e o cuidado. Para reparar as dores, acolher as lágrimas, louvar a vulnerabilidade. A função do oráculo é também criativa. Com o 8 se fecha e se abre: respira. É preciso saltar no abismo. Coragem.






– Madama Brona é cartomante.


SAIBA MAIS SOBRE MADAMA BRONA EM:
︎Instagram