RENAN SOARES


O Descobrimento da Carta
( O mundo é um Moinho)





Hoje é dia 19 de abril, data reservada á celebrar o dia do índio (designação colonial atribuída aos povos originais nativos de Pindorama). Essa data é uma das muitas em nosso calendário (cristão e europeu),  carregadas de um ranço histórico em função da eterna discordância da realidade e dos significados relacionados a elas e que assim como o suposto dia do descobrimento ou da consciência negra dão conta de ocultar os fatos como se deram e apagar a memória dos envolvidos nesses momentos fora da perspectiva colonial. No entanto, às vezes alguns detalhes se mantém nos registros oficiais revelando dados deixados de lado ou muitas vezes despercebidos.

Esse texto é um relato do momento em que eu e a artista e criadora Maria Leticia Costa (Manauara Clandestina) pela primeira vez fizemos juntos a leitura da carta oficial que relata os dias percorridos pela esquadra portuguesa de Cabral no que viria a se tornar o Brasil descritos por Pero Vaz de Caminha.

Era setembro de 2019, e eu havia partido de São Paulo para a região da Chapada dos Veadeiros em Goiás para integrar uma residência artística e aproveitar a natureza do lugar para fugir um pouco da sociedade e reorganizar minha mente e corpo que estavam bastante desgastados na época e sem muitas perspectivas a respeito de futuro. Para isso encontraria Manauara uns dias antes do início das atividades pois compartilhavamos desejos e emoções parecidas em relação a necessidade de se encontrar e repensar novas narrativas para as nossas trajetórias. Ela uma TRAVESTI de 25 anos que migrou de Manaus para São Paulo e trazia consigo toda a bagagem de vivências e conhecimentos que sua corpa adquiriu nesse processo, buscava um outro sentido para sua existência que não a morte ou o simples cumprimento de todos os marcadores e estimativas  atribuídas a uma vida trans nesse país sobretudo nas grandes capitais. Eu um homem cis de 31 anos nascido em SP me encontrava confuso e desmotivado em relação ao presente porém  determinado a modificar os rumos que minha produção e conduta haviam tomado até ali. Esses se tornaram os pontos comuns de nosso isolamento voluntário em Moinho povoado quilombola em constante luta para ser reconhecida e respeitada.

Quando cheguei pude perceber imediatamente os efeitos positivos que a viagem já havia produzido em Manauara, seu jeito, fala e beleza eram outras e todas muito mais preenchidas de certeza e intuição. Iniciamos então um circuito de atividades que variavam entre brincadeiras nas trilhas e cachoeiras, visitas aos comerciantes e figuras míticas do lugar e longas conversas a noite sobre tudo aquilo que estamos vivenciando de forma tão afetiva. Foi em uma dessas conversas que ela me falou que estava preparando um roteiro de aula para um projeto futuro e me pediu uma sugestão de provocação e eu subitamente sugeri a carta do descobrimento, documento que eu conhecia superficialmente. Lemos em voz alta um para o outro o conteúdo da carta e juntos constatamos a sucessão de trechos capciosos que a narrativa contém como no trecho em que o narrador diz que o primeiro ato de diálogo dos  nativos trazidos a bordo foi apontar objetos de ouro e prata e insinuar que esses materiais abundavam na terra, ou o fato de os únicos integrantes da tripulação a ficarem serem dois degredados e talvez o mais terrível que é a conclusão da carta que indica que os nativos curvaram se em reverência a uma cruz durante a missa realizada em terra firme. É ao mesmo tempo triste e revoltante constatar que o primeiro registro escrito deste encontro já estivesse impregnado do mesmo interesse e cobiça que permearam todos os séculos seguintes em relação a o processo de colonização e as suas consequências. Poder compartilhar essa visão de passado profundo com Manauara, uma descendente direta das Icamiabas mulheres guerreiras que deram o nome ao estado em que ela nasceu e que abriga a mais extensa floresta do mundo e é lar da maior concentração de povos nativos das Américas dava a tudo isso um tom mais denso e trágico.

Estamos em plena uma pandemia global, momento único em que as tecnologias rompem barreiras continentais tornando tempo e espaço relativos aos desejos e anseios de uma nova sociedade tendo de se reconstruir em todas as suas bases econômicas, sociais ideológicas enfim em sua constituição de humanidade. O que conhecemos como o descobrimento das américas foi o início do maior genocídio da história da Humanidade, com o extermínio de pelo menos 90 milhões de nativos mortos na extensa maioria não por armas ou guerras mas em função de epidemias trazidas pelos seus colonizadores. Sempre que minha memória retorna  aquela noite em que nós nos tornamos cúmplices dessa descoberta de algo tão afastado e ao mesmo tempo tão próximo e fundamental e que nos atravessou de uma forma tão intensa, minha mente se enche de uma curiosidade infantil e selvagem. E uma pergunta surge quase que inevitavelmente. Quais serão as cartas que deixaremos para serem descobertas?....




– Renan Soares é Artista multimídia e Arte Educador, sua produção passeia por diversos campos como ilustração, audiovisual, performance, cenografia, instalação alem de desenvolver oficinas colaborativas e trabalhos publicitários, utilizando o desenho como ferramenta base do desenvolvimento de todas essas ações. O encontro e a relação entre os suportes e espaços são o ponto central das suas propostas que geralmente evocam a recriação mitológica e as máscaras. Participou de exposições individuais e coletivas e de diversas colaborações em projetos visuais com música e teatro.


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